terça-feira, 19 de novembro de 2013

Ônibus

Não é que ele gostasse de companhia. Muito antes o contrário. Elê adorava a sensação de alívio qur sentia toda vez que pegava um ônibus vazio. E ele sentia o suor escorrer por baixo do terno barato que usava toda vez que o ônibus começava a lotar.
Usualmente apoiava a bolsa na cadeira da frente e sentava no corredor. Como se assim tampasse o caminho e ninguem pudesse sentar ao seu lado. Como se o ato de pedir licença impedisse as pessoas de sentar, como de fato o impediriam. Por isso ele sempre senta no corredor.
Hoje não é diferente. É um desses dias chuvosos da primavera carioca, onde os quarenta graus do dia anterior se transformam em dezoito durante a noite.
Hoje ele passou pelo metrô no centro as seis da tarde sem suar. E se você não sabe o quanto isso é raro duvido que conheça o Rio de Janeiro. O dia está sendo bom, o trânsito está horrendo, mas sem o calor o humor das pessoas sofre uma pequena melhora. Inclusive o dele.
Ele pega o ônibus no ponto final. Senta em sua posição usual, perto da saída e espera. E espera. O ônibus enche lentamente, mas sem parar. Em breve todos os bancos vazios tem uma pessoa e com alguma sorte ele consegue passar por isso sem companhia.
Mas o ônibus continua a lotar.  A ansiedade começa a bater,  a mochila a frente vira um  tambor.
A fila que se forma avisa a ele que  é inevitável.  Não há jeito desse ônibus não lotar.
Dito  e feito,  logo todos os lugares estão lotados.  Há gente nas escadas,  há gente em pé.  E assim o ônibus parte. Tenta partir.  Porque hoje choveu.  Ou seja nada anda.
Os minutos passam  mas o cenário quase não muda.  As mesmas ruas pouco arborizadas,  os mesmos prédios da década de  80, os mesmos pequenos comércios.
Ele não consegue parar de olhar o relógio.  Já fez um jogo consigo mesmo para parar,  mas é
impossível. Os pensamento fluem rapidamente.  A casa vazia, as contas a pagar, uma viagem no início do ano,  aniversário do sobrinho chegando,  tudo tão ínfimo,  mas menos ínfimo do que o que aquieta agora.
Porque o ônibus está cheio e não anda.  E ainda assim não a ninguém ao seu lado.
Ele sabe que não tem nenhum cheiro estranho,  a poltrona não está suja, ele não está ocupando todo o espaço.  A mochila desistiu de sua posição habitual e já se encontra no chão sobre os seus pés. E mesmo assim ninguém. Como se o local ao seu lado fosse invisível. Ele cogitou isso. Não o local ser invisível mas as pessoas simplesmente não estarem vendo.  Possível,  não provável.  Mas a idéia o aquietou um pouco. Claro que foi difícil mante-la com as pessoas se apoiando no corredor ao seu lado.
Talvez essa menina não queira sentar.  Talvez ela esteja feliz ouvindo sua música em pé. Assim como uns outros sete passageiros perto que estão no mesmo estado.  A probabilidade não contribui muito para essa hipótese.
Sem a mochila para ser agarrar ele tenta manter as mãos no colo. Fixas.  Não consegue,  precisa checar o relógio.  Precisa ajeitar o óculos.  Precisa fazer qualquer coisa menos manter as mãos fixas.
Uma hora de viagem pseudo solitária.  O dobro do tempo habitual do trajeto e ele ainda não está na metade do caminho. A chuva está fraca. 
Ele faz  sinal para descer. O motorista abre a porta e em segundos ele se vê do lado de fora sem nada entender.
O trânsito ainda está parado e está chuviscando.  Seus óculos vão  molhar e os seus sapatos vão acabar estragando. Sua mochila não tem o melhor dos impermeabilizantes mas tem uma serie de documentos importantes em compensação.
Mas quando ele ultrapassa o próprio ônibus a pé e vê que agora há dois lugares vazios ao invés de um, ele vai para casa sorrindo sabendo que a culpa,  dessa vez pelo menos não é dele.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Dia 5 Lembranças

As semanas passam sem incidentes.Quase sem notar o mês acaba e outro começa e não há nada a se dizer sobre os dias. Sim, Gabe e Raph cresceram alguns centímetros. Gabe se recusou a cortar o cabelo e agora é bem fácil de discernir os dois.
Os negócios tem ido consideravelmente bem, mas eu não tive que fazer nenhuma entrega, infelizmente. O que significa um mês praticamente sem ir a cidade. Exceto no final de semana passado que fomos no mercado da cidade baixa.
O lugar é sujo, literalmente. O esgoto não funciona direito naquela parte da cidade deixando um fedor horrendo que é o que mantem os soldados longe. Fica bem perto das antigas docas e todo o contrabando chega por aqui. O velho no caso veio comprar informações, saber como anda as coisas fora dos limites da cidade. Sinceramente, não há nada interessante acontecendo no mundo inteiro, na minha opinião. Então eu fico com as crianças enquanto Gary vai com o velho.
A primeira vez que eu vim aqui, havia apenas umas parcas barracas e as ruas estavam em uma situação bem pior. O velho me trouxe para comprar algumas roupas. Eu tinha roupas e eu lembro dele sorrindo e dizendo "Roupas de garotas." e eu realmente preferia que ele me comprasse um brinquedo, mas de jeito nenhum eu ia pedir. O que não interferia no jeito com eu olhava os animais de brinquedos. Eles eram feitos com batata ou algo parecido e eu tinha me encantado particularmente com o cavalo. Ou eu achava que era um cavalo, na época eu nunca tinha visto um cavalo de verdade.
Zack me levou para experimentar as roupas ou algo parecido e quando eu voltei o velho perguntou se estava tudo certo e se abaixou e me entregou o cavalo. Foi a primeira vez que o abracei e ele disse, que ele podia não dar tudo que eu quisesse mas que eu nunca ia saber se eu não pedisse.
Na época a gente não tinha muito mais dinheiro do que para comer mesmo e comprar coisas para revender. Nem todas as famílias queriam ir até as docas para comprar seus alimentos então a gente levava até eles. Eu não tenho noção da extensão dos negócios do velho nos últimos anos, mas se for considerar a quantidade de dinheiro que me dão para eu distrair os pequenos, as coisas vão indo bem.
O sol nem sai direito nesses dias de inverno. O mercado está cheio justamente por isso, a falta de sol, o vento gélido faz com que o ambiente seja um pouco mais suportável. Pelo menos antes de chegar a primeira neve. A lista de compras é curta, Raph precisa de botas e Gabe precisa de um gorro. Um que ele consiga manter durante os próximos dois meses de preferência. O velho precisa de luvas, mas de jeito nenhum ele coloca algo para ele na lista. Ele nunca coloca. Gary está bem abastecido para o inverno, só a mente dele que precisa de alguma diversão porque aparentemente ele não sabe o que é isso.
É no meio desses passeios que eu me pego pensando o quanto a vida antes podia ser melhor. Sinceramente, isso já está bastante bom. Eu sei que isso é uma visão pessoal e tem muita gente em situação pior e que eu devia esperar mais da vida, ter grandes sonhos...Entretanto acho a frustração desnecessária. Não dá. Não existem mais as coisas que antes haviam.
De uma geração para outra todas as perspectivas mudaram. Ok, senhor, legal como você foi para a faculdade e sonhava em poder criar arte e ser famoso, mas seus sonhos não me inspiram. E eu não quero ficar deprimida porque o meu mundo não é colorido como o seu costumava ser.
Quando Gabriel me pede, com o enorme sorriso amarelado, uma câmera antiga, meu primeiro pensamento não é que é muito caro revelar fotos. Ela liga, funciona a bateria e tem um carregador. Eletricidade pode não ser farta mas acho que dá para ele carregar pelo menos de vez em quando, nem que seja para ele ficar observando as fotos na tela.
O velho tem um laptop. Uma coleção deles, a maioria não funciona inteiramente e a gente se diverte trocando as peças até que eles liguem. Funciona como uma planilha mais fácil de adicionar e marcar coisas. Ou como um caderno. Um caderno que você não precisa riscar as coisas quando erra, só apaga e marca o novo.
Ele diz que eles eram muito uteis e que as pessoas costumavam passar o dia inteiro com eles. Ele diz também que eu provavelmente seria uma dessas pessoas, que em outra era ele teria uma garota que ficaria no quarto o dia inteiro e que brigaria com os irmãos se eles tocassem no computador. Ele diz que prefere quem eu sou hoje do que quem eu poderia ser e eu seria uma grande mentirosa se eu dissesse que não fiquei envergonhada com o comentário.
Gary aparece enquanto os gêmeos estão experimentando roupas. Gabe e Raph se acabam de rir com ele provando os mais diferentes casacos. "Eu já tenho agasalho, se lembram". O lembrete do casaco azul não é o suficiente para tirar os gêmeos de sua brincadeira. Somente quando estamos todos dentro do ônibus e os dois folgados adormecem em nós que o silêncio volta a reinar.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Dia 4 Casa e comida.

Um tapa. Outro tapa. Sinto a vermelhidão no rosto mas não consigo me obrigar a responder a ela. Outro. E então um chamado.Ouço meu nome repetidas vezes. Tantas vezes que começa a me irritar, eu só quero descansar, por que continuam me chamando?
Abro os olhos irritada, mas o que eu vejo dissipa qualquer raiva que eu tenho. Olhos azuis me encaram. Olhos que eu reconheço em qualquer lugar. 
"O que houve?" - estou em uma cama. Minha visão ainda está turva mas eu tenho certeza que esse aqui não é o ferro-velho. O lençol sem duvida não cheira a graxa.
"Eu que te pergunto o que houve, primeiro você não volta para casa, depois falta seu turno e agora todos esses machucados. Quando foi que você se tornou tão irresponsável?" -Tento me concentrar nele. Dizem que se você manter seus olhos em um ponto fixo, as chances da tonteira melhorar são maiores. Não sei do  que ele está reclamando. Não é nem como se ele estivesse em um bom estado também. Parece que não dorme há dias e há fuligem cobrindo seu rosto e sinceramente se eu tivesse que chutar nesse momento eu diria que ele tem quase trinta anos, o que eu sei bem que não é a realidade. 
"Água."
"Que?"
"Você tem água, aí com você. Comida, ração, qualquer coisa" É engraçado vê-lo se atrapalhar todo buscando o cantil na mochila. Não reclamando, eu preciso dessa água. Urgentemente. E não vou mentir, minha boca saliva só de ver a barra proteica que ele estende. Ninguém precisa saber disso, considerando a frequência com que eu reclamo dessas coisas.
"Bebe e come isso.. Temos que ir pra casa logo e você me deve explicações ainda. " A vontade de dar explicações é nula. Bebo quase toda a água do cantil antes de abrir a barrinha. 
"Esses trecos são restos amassados,você sabe disso não? Restos de comida dos outros."
"Não come então."
Eu como. O que não muda o fato de quão nojento é o que eles nos dão. As sobras dos soldados .

"Está quase de noite. Consegue andar ou a princesa precisa ser carregada?"
Ele fala isso, mas a expressão dele é preocupada. As sombrancelhas franzidas e os pequenos riscos ao lado dos olhos azuis mostram isso. Gary nunca foi muito bom em expressar as coisas com palavras então ele devia ser grato por suas expressões sempre denunciarem tudo. Claro que ao invés de ser grato ele odeia quando a gente diz isso a ele.
A caminhada é lenta e dolorosa. Odeio quando tenho que fazer as coisas devagar mas cada vez que tento me apressar a dor manda calafrios nas minhas costas. No final da rua principal  viramos a direita e ali está, o lugar que eu chamo de casa. Ou pelo menos tenho chamado nos últimos sete anos.
A casa tem uns quarenta anos de idade, o pai do velho que construiu. Ele queria poder ficar perto dos filhos após a esposa falecer então tinha desistido do trabalho na cidade para tentar fazer algo em casa, o que resultou no quintal gigantesco ser transformado em uma garagem.
O velho mostra nas fotos antigas como era, tinha uma parte separada para consertos leves, logo na frente. Um galpão de restauração e o resto ele guardava os carros que ele achava que ainda podiam ser utilizados para alguma coisa. Agora os carros se encontram empilhados ao redor da cerca, delimitando o terreno. A frente da casa está sem pintura e a varanda tem piso faltando em diversos pontos. Entretanto as paredes são firmes, as portas e janelas são reforçadas e o teto não tem vazamento e no fundo sabemos que devemos ser gratos por isso.
Gary  bate na porta e fica esperando eu me juntar a ele na varanda. Eu só quero tomar um banho e colocar logo curativos nessa perna, ficar mancando não é exatamente opção. A porta se abre e dois pares de olhos castanhos nos observam desconfiados.
-Gabriel, Raphael. Vocês dois podem nos dar licença? - Gary e o velho são os únicos que conseguem ser duros com os dois. É impossível para mim quando eles fazem essas expressões adoráveis.
"Não sei, você acha que são eles mesmos?"
"Acho que deviamos conferir."
"Com certeza deviamos. Mas, como?" - Raphael dizia quando Gary resolve empurrar a porta de uma vez por todas.
"Qual o problema de vocês dois, não vê que ela tá machucada?"- ele diz enquanto me direciono ao sofá.
E pronto, agora eu tenho dois pequenos ao meu redor querendo examinar meu machucado. Raphael já está perguntando como foi a dor, se eu vi cadáveres distorcidos, sério, que tipo de pessoa ele está se tornando? Gabriel não, ele se senta automaticamente ao meu lado no sofá e fica me encarando como se de alguma forma fosse resolver tudo, mas se recusa a olhar o machucado. Encosto a calça ensanguentada nele só pela diversão em vê-lo sair correndo.
"Você devia dar exemplo, não piorar a situação."
"E você não tem que ser o pai de todo mundo, sabia?"
Há alguns sacos de alimentos espalhados pela sala. Aparentemente as vendas de ontem foram boas, o que significa uma semana sem grandes preocupações. Não há nada demais na sala, nada restou da antiga decoração praticamente, tudo vendido quando a crise começou, só o que foi deixado foi uma foto do velho com seu irmão e uma do casamentos dos pais deles. Fora isso só o sofá , velho, mas ainda confortável. A estante com seus parcos livros que eu e Gary construímos uns anos atrás e sempre achávamos que não ia aguentar nenhum peso mas que ainda está aqui. A mesa de centro inventada a partir de um caixote e que basicamente serve para apoiar copos e é isso.
O velho ensinou a gente a não deixar nada de valor no primeiro andar, só o que for comida e mesmo assim os embutidos estão guardados num quarto que não é utilizado no segundo andar. A porta da cozinha é reforçada mas não é nada em comparação a porta que dá para escada. E a porta no topo da escada.
Me levanto também. Já deu para notar que o velho ainda não chegou e eu realmente preciso limpar esses ferimentos antes de poder falar com ele. A casa foi feita para 6 pessoas. Mas, tem apenas 2 banheiros, ah, e algo que você poderia chamar de banheiro do lado de fora.
Subo as escadas ainda com Raphael me observando. Não é como se ele tivesse algo mais interessante para fazer então não posso realmente culpa-lo, pelo menos ele abre as duas portas para mim sem nem eu pedir.
O segundo andar em nada lembra a deprimente sala. O longo corredor foi pintado de vermelho há poucos meses atrás, a escolha da cor foi do Gabriel, obvio. E apesar de ser horrendamente chamativo, me dá uma sensação de dinheiro. Provavelmente é só porque é tão novo e bem pintado. Há alguns quadros aqui também, no geral dos desenhos feitos pelos gêmeos que a gente simplesmente pendura na parede ou até fotos nossas, dessa família desajustada.
A porta do banheiro é a única que fecha com tranca. Rapha me acompanha até a frente dela e segura-a para mim enquanto entro. É engraçado contrastar a figura pequena, descalça, a camisa larga e os cabelos aloirados tão bagunçados com o rosto tão determinado e responsável. "Grita se precisar de ajuda" ele diz antes de sair todo sério e eu sei que ele vai verdadeiramente ficar prestando atenção porque é isso que Raphael faz.
Não tenho necessidade de fechar o trinco, esforço inútil. No momento tenho que me concentrar no fato que o jeans se grudou nos cortes. E não levemente. O suficiente para eu considerar cortar todo o jeans e tentar lavar com essa parte presa mesmo. Não vou fazer isso, eu sei que no fundo vou ter que descolar de um jeito ou de outro.
Afasto as cortinas e ligo o chuveiro. Tenho a impressão que pelo menos debaixo d'agua a dor vai ser mais tolerável. Eu espero sinceramente que eu esteja certa. Já vi isso acontecer antes e o jeito como sangra não é nem um pouco bonito.
Começo a tirar a calça devagar até que decido ser um pouco mais corajosa e agir como se fosse um band-aid. Dor. Dor o suficiente para eu não conseguir esconder um gemido. A porta é aberta rapidamente e os pequenos da casa me olham desesperados até que eu tente tacar algo neles. O mais perto que encontrei foi o sabonete e não posso reclamar, a porta se fecha logo em seguida, mas agora preciso pegar o sabonete.
Daqui a pouco, por enquanto é melhor deixar a água simplesmente passar no machucado.

domingo, 29 de setembro de 2013

Dia 3 Chegando

Minha cabeça parece que vai explodir. Isso é uma certeza. Os sons parecem distantes e eu tenho certeza que o chão não está onde deveria estar e que isso são gritos. O líquido quente que está escorrendo pelo meu rosto é sangue. Não sei se é meu. Não sei nem se consigo levantar.
Merda. De repente todos os sentidos estão acordados. Preciso sair daqui. Rápido. O ônibus está virado. Os passageiros estão nos mais diversos estados e céus, o quanto eu daria para não ter mais que ver gente morta. O quanto eu daria para passar uma semana sem gente morrer na minha frente.
A tonteira é imediata. Ninguém mandou eu ficar de pé tão subitamente. O sangue é do corte da minha cabeça mesmo, tenho certeza que tem algo errado por eu achar isso uma boa notícia mas com a quantidade de drogas que as pessoas usam hoje em dia para se manterem sobrevivendo é melhor evitar esses contatos diretos. Intimidade demais.
A perna esquerda dói. Muito. Não o suficiente para eu não conseguir arrastá-la. Me suspendo pela janela já quebrada, uma senhora no ônibus começa a gritar por ajuda. Seu braço parece preso nas engrenagens e eu sei que não tem jeito de tira-la dali sem matá-la de tanto sangramento. Um dos  sujeitos que estava dormindo nos bancos se aproxima dela. A expressão no seu rosto me diz que está na hora de ir embora.
Estar do lado de fora abafa menos os gritos dela do que eu imaginava. A poeira está absurdamente alta e metade dos prédios não existem mais. Uma explosão. Ou implosão mal feita. Se foi programada em breve uma patrulha estará conferindo. Se não foi podemos contar com uma duzia de pessoas vindo conferir.
Regra de ouro. Sempre é melhor sair da estrada principal. Regra de prata, ao sair da estrada principal tome cuidado com as pessoas que também conhecem a regra de ouro. Me arrasto entre 2 prédios , um deles está porcamente de pé ainda, o pórtico totalmente destruído. O outro, bem, parece normal tirando o fato que aparentemente o último andar se encontra no chão. Caminho entre os destroços, o avanço é lento, há alguns outros gritos do ônibus agora o que significa que preciso chegar até a rua paralela.
Faço o caminho sem parar para repousar. A entrada do distrito 3 é a menos de sete minutos. Pessoas se aproximam, elas passam por mim sem olhar duas vezes. Chego a rua lateral e preciso de pelo menos dois minutos no umbral de um prédio para me recuperar.
A rua está aparentemente vazia. Sigo por ela. 
Em pouco tempo já posso ver a placa verde desgastada feita em tempos melhores onde esse era um belo distrito residencial. Um dos mais caros na realidade. Ainda dá para ver os restos da cancela e das guaritas de segurança. Condomínios fechados de casas.
Minha cabeça roda e eu tento me concentrar nos meus passos o que esta se tornando bem desagradável considerando o formato que a minha perna está fazendo. 
Cama. Tudo que eu quero. Não vou chegar até o ferro velho. Estou perdendo sangue demais para isso e sei que a trilha que estou deixando não é a mais bonita de todas . Talvez eu esteja exagerando quanto a quantidade de sangue. Talvez até provável, mas não consigo me concentrar.   Faço até o final da primeira fileira de apartamentos,não  consigo nem lembrar mais que casa que é segura. As chaves estão no bolso do meu casaco, consigo senti-las. Acho que era a terceira casa da esquerda.  Ou talvez da direita ou... Não consigo lembrar.
Minhas pernas já não me mantêm. Só preciso sentar um pouco aqui na calçada, só um pouco....



sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Dia 2 Caminho.

Acordar suada após um pesadelo já é rotina. Os sonhos são constantes e toda vez que não deito de exaustão eles vêem. São mais lembranças do que sonhos na realidade e quando acordo só posso desejar que durante o dia de hoje não ganhe nenhuma nova memória para abastecer esses sonhos.
A alcova é bem diferente dos outros esconderijos. Me lembra mais um lugar seguro que todos os outros. No inicio eu queria passar todo o tempo aqui, para aproveitar antes que algum desastre ocorresse e eu deixasse de existir. Com o passar das semanas, meses, eu não acho mais que irei morrer a cada esquina. Então deixo para vir em emergências apenas. Mais provável do que eu morrer é alguém me tirar esse lugar se me virem entrando sempre.
Outra coisa sobre a alcova é que ela não recebe luz matinal. Nenhuma. Apenas depois de meio dia o sol começa a entrar o que torna impossível olhar a vista de tarde. E é esse sol que me acorda juntamente com meu estômago reclamando.
Chuto uma hora da tarde agora, quase 16 horas desde a última refeição. Coloco a cama no lugar de antes, levanto os objetos que deixei cair enquanto entrava de madrugada e estou pronta para sair. Abrir os trincos,  a porta, fechar a porta, fechar os cadeados. Rotina de segurança.
Saio do beco com cuidado, a rua já está lotada de pessoas, em busca de algo o que comer, de algum serviço que possam fazer em troca de abrigo ou alimentação. E existem os grupos nos cantos querendo pegar o que as outras pessoas conseguirem.
Logo quando tudo isso começou as pessoas buscaram juntar-se em grupos, em geral com sua própria família. O governo diz que se uma pessoa a cada 4 trabalhar diariamente não vai faltar nada. Mentira. Os vizinhos do meu tio moram em um grupo de cinco, os três adultos trabalham todo dia e as duas crianças parte do dia. É isso ou ser vendida e bem, ninguém quer ser vendido.
Mal saio na principal e o cheiro me enoja. A avenida está infestada de pessoas nos seus mais diferentes estados. Corpos jogados nus no chão, mortos por seus parcos pertences. Crianças tentando saquear o pouco que restou. Casas abertas, vidros quebrados. Isso é o que o apagão faz. Você não precisa ter medo que alguém te veja, ninguém vai pegar seu número de identificação, ninguém vai saber que foi sua culpa. você vai poder alimentar sua família. Agasalhar-la considerando que o inverno está na esquina. Vai poder comprar remédios. Uma chance muito boa para deixar passar e assim a oportunidade faz o ladrão.
Eu prefiro ficar na minha. Lá no inicio, eu ainda tentava pegar alguma coisa, mas fui castigada o suficiente para preferir me esconder. Quanto menos atenção melhor.
Coloco o capuz e caminho até o ponto de ônibus,o que na realidade é só uma plaquinha. O tempo de espera pode ser qualquer coisa entre um minuto e três horas e por mais que nada seria tão agradável (exceto por comida) do que colocar os fones de ouvido, preciso ficar atenta.
A caminhada até  o ferro velho é de cinquenta minutos. A maior parte do caminho é pelo distrito 3 o que significa que já roubaram tudo o que podiam de lá há muito tempo então dá para caminhar mais tranquilamente. O que é bem diferente daqui onde todos te encaram tentando calcular com os olhos quanto você vale.
O ônibus chega antes que alguem decida que eu sou um bom alvo. Lembro subitamente porque qualquer caminhada é melhor do que o transporte público. Nem falo só sobre o fato de quase não haver cadeiras mais, da sujeira e das pessoas dormindo. Não dá para escapar no ônibus.
As janelas podem estar abertas, dando a ilusão de liberdade. Só que a verdade é que eu estou presa aqui pelo menos até a próxima parada. 7 minutos até ela alias. São 19 minutos até a entrada 1 do distrito 3. Tento me concentrar nisso mais do que tudo.
Lily vai ficar tão feliz quando souber o que eu estou levando. Ela e Jos já devem estar voltando das suas obrigações por essa hora e com sorte o velho guardou um pouco de comida para mim. Ele vai ficar chateado por eu não ter ido ao campo. Hoje quero fingir que não preciso ir lá, que não preciso nunca mais ir. Que eu posso simplesmente voltar para o ferro velho, concertar algumas coisas, ver tv - a quanto tempo eu não vejo tv?- beber algo gelado e deitar ao relento. Fingir que amanhã não haverão consequências para esse dia de folga.
Ele não vai falar nada quando me ver chegar assim, ele nunca fala. Algo como você já está encrencada mesmo, que pelo menos você fique feliz até tudo cair na sua cabeça. Acho gentil da parte dele, quase acredito que ele entenda. O que só faz com que eu tenha vontade de chegar mais rápido. O bom de andar é que você faz seu pas-

domingo, 15 de setembro de 2013

Dia 1 Escuridão

Sempre imaginei que a dor de um tiro fosse insuportável. Que se você não morresse com a ferida a dor te matava. Por enquanto está sendo um pouco decepcionante, devo dizer.
Não se engane, você realmente sente que abriram buracos entre os seus tecidos e o sangue quente encharcando a roupa não faz a sensação mais prazerosa. Mas eu estou viva. E isso é mais do que eu esperava.


Eu tinha cinco anos quando a crise aconteceu. O mundo ficou sem energia durante 11 dias. Não deveria ser um grande problema, não? Eu achava que não. Mas, o mundo que se reergueu depois desses onze dias é bem diferente do mundo que havia antes. Em sentidos que eu não posso nem começar a entender.
As pessoas costumam falar como era o país antes da crise. Como tudo era organizado e todos viviam felizes. Mentira. Mesmo sem livros para apoiar minha opinião, eu afirmo que não, as coisas não eram tão boas antes. Mas, pelo menos eles tinham luz...
Tenho um especial apreço pelas noites escuras. Quando decidem desligar todas as luzes da cidade sem aviso prévio. Não sei se é realmente de propósito, acho que com a quantidade de assassinatos que acontecem nesses momentos, deve ser mais para controlar a população. Medo é sempre um excelente controlador.
Há poucas luzes nas ruas e no geral bem fracas, famílias buscando um lugares para se refugiarem. Um lugar que as proteja dos que andam na surdina. Verdade seja dita, não há reuniões dos grupos rebeldes nas noites escuras. Quem tem casa, se tranca. Quem não tem, arranja um lugar vazio, para se trancar também. Eu entendo. Ninguém tem tempo para apreciar as estrelas. Essa gente mal tem tempo para sobreviver. Entendo eles não se divertirem observando a lua. É difícil se divertir quando tem sombras buscando sequestrar seus filhos. Crianças e seu alto valor de revenda.
Também não é seguro para mim. Tenho meus esconderijos fixos já. Um em cada canto da cidade pelo menos, por causa das emergências. Nem todos muito confortáveis, mas esse aqui, esse aqui tem até uma cama. E um rádio. Tudo o que uma garota poderia sonhar.
Passo pelas pessoas correndo por um lugar, entrando no beco. A escadaria de emergência do prédio 156 da rua 17 e pronto. Em alguns minutos estou na porta do terraço. Destranco a porta, abro o cadeado. Entro, passo os trincos. Todos os sete. Quando não se tem muito, o esforço para proteger o que se tem pode ser abismal.
A escuridão me engole com a porta fechada, mas eu sei meu caminho. A parte mais interessante desse esconderijo é a alcova. Pé direito alto, no topo de um prédio de 14 andares, faz com que eu me sinta segura. E também me proporciona uma bela vista do céu da cidade. As estrelas se encontram absurdamente visíveis e não há barulho de carros nas ruas, as patrulhas não passam quando não tem luz.
Puxo a cama para logo abaixo da alcova. Melhor dormir assim. O peso do pacote no meu bolso não pode ser esquecido. Eu sei que tinha que voltar para casa hoje, mas sei que eles vão entender que não é possível. Provavelmente vão ficar mais surpresos de eu realmente ter procurado um lugar para ficar. Tantas coisas para resolver amanhã....
Fecho os olhos e deixo o cansaço tomar conta de mim. A luz do dia trará seus problemas novamente.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

European Way of life

"The prevalence of European styles in architecture and clothing isn’t because they’re just better than the rest of the world’s styles, it’s because European culturally brutalized the rest of the world and other cultures had to change to blend in."

Hoje eu acordei numa cama box. Fui no banheiro, escovei os dentes, escolhi uma roupa qualquer, organizei minha mochila e saí apressada. Sem café-da-manhã, por causa de uma aula de uma matéria não tão interessante. Perdi o primeiro ônibus. E o segundo, mas peguei o terceiro. Estava um tanto cheio, peguei um pouco de engarrafamento, corri para pegar outro ônibus. Na aula a professora desenha no quadro e depois explica. Os alunos conversam enquanto isso. Almoçar correndo, partir para outra aula e...
Nada disso é natural, não? Normalmente eu estou me referindo a pressa do dia-a-dia, a obrigação de seguir a massa, de fazer faculdade, de trabalhar oito horas por dia, aguentar gente que te odeia e ficar feliz com isso. O que eu estou pensando hoje é um pouco diferente.
Por que a cama que a gente dorme é tão semelhante a de outros tantos países desenvolvidos? Por que a privada que a gente usa também? Pastas de dente são parecidas, roupas mais ainda. Mesmo material, mesmos padrões de beleza com apenas algumas diferenciações. Na faculdade, as pessoas se vestem parecidas. Tem cabelos parecidos.
É natural.
Não não é.
Claro que não é.
Como tantos países se parecem tanto e como isso é esquisito. Será que se a gente não tivesse tentado se igualar a um padrão comportamental estrangeiro ainda dormiríamos em redes?  Talvez tivéssemos desenvolvido melhor as redes. Talvez tivéssemos mais ferrovias. Talvez visitássemos mais o interior do nosso próprio país. Talvez tivéssemos mais museus. Talvez, só talvez, tentaríamos resolver nossos problemas com soluções feitas para nós sem copiar outros lugares. E só talvez , elas funcionariam melhor.
Talvez tivéssemos mais orgulho do nosso jeito de pensar, das nossas características, do cabelo cacheado, Talvez os esportes fossem mais diferenciados, nossas atividades de lazer. Nossas profissões até, nosso jeito de lidar com as angustias.
O Japão é sempre um bom exemplo. De um país desenvolvido, globalizado, que contudo mantêm seus princípios. Não interessa se são princípios positivos ou negativos, pelo nosso julgamento. O ponto é que eles não levam uma vida igual. Existe algo diferente no jeito deles de pensar, algo que diferencia. Algo que caracteriza o japonês, além dos óbvios olhos puxados e da língua.
O mundo tem muito a perder na ânsia de se tornar um só. Os séculos passaram e mesmo nós, subdesenvolvidos ainda olhamos com asco algo diferente de um país mais pobre, porque eles são assim porque eles não sabem que podem ser como nós.  Que etnocentrismo é esse que desenvolvemos e deixamos no meio do caminho de apreciar o que nós realmente temos de bom?

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Depressão

Quão difícil deve ser para pais lidarem com seus filhos depressivos. Lidarem com o fato que seus filhos não agüentam mais viver. Que o mundo foi cruel com eles a um ponto que eles não sabem mais resistir. Ou que eles não acharam o sentido da vida que você tanto falava? Quão impotente deve-se sentir? Só que não há o que fazer. Você pode tentar arranjar motivação mas e quando nada mais motiva? Quando não se sente mais nada porque insistir numa felicidade artificial?
Eu achava que eu era muito fria e passei anos fingindo minhas ações. Mas na realidade eu nem era. Eu só não sentia . Não se passa de nunca chorar para chorar desesperadamente por causa de uma... Uva. Ou algo de igual importância.
Não é natural. Aquele não era o meu normal e nem este o é. E como dizer que essa angustia está tão presente que eu nem sei como é ficar sem ela? Muito difícil lutar para ficar melhor quando o melhor é desconhecido e aterrador. E mesmo assim você vai lá. E escala uma montanha gigantesca. Só para saber se a vista de lá de cima te agrada. E você vai passar para o outro lado da montanha. Talvez não porque você acha que deva. Mas porque existe tanta gente dizendo que é bom e certo. E que você tem de vencer essa luta e você vai e chega ao pé da montanha. Do outro lado de onde você começou. Você conseguiu! Você deu a volta! Todos estão felizes por você. Existe uma grande comoção, só que em alguns segundos as pessoas voltam com suas vidas. Elas tem que acordar cedo no dia seguinte e tal. Só que está tudo bem, você já está do lado delas. Você é um deles.
Então por que você olha através da montanha e acha que se traiu? Por que você acha que deixou tudo que tinha lá? Tudo que te fazia especial e infeliz? Eu acho que é porque você realmente deixou. E se tornou quem seus pais queriam que você se tornasse. Você vai fazer o mesmo com seus filhos. E céus, provavelmente você vai fazer a mesma cara de choque que seus pais fizeram ao descobrir sua depressão. Não se torne essa pessoa. Se torne alguém que realmente pode ajudar e não que tenta enquadrar o outro. Não é necessário enquadrar ninguém.
A depressão não é você. Não tenha medo de deixar ela para trás.

domingo, 9 de junho de 2013

Mente

É curioso ver como falamos das pessoas nos esquecendo que somos uma também. Tão fácil julgar e condenar e nunca ponderar sobre as coisas. Acho que temos tanto medo de pensar profundamente e ver o universo da mente se expandir que preferimos simplesmente ficar com a ignorância. Conhecimento é assustador. Pra mim conhecimento é o verdadeiro poder. Não o poder que governa. Mas o que chamam de poder de Deus. Porque aparentemente o poder está nas mãos das pessoas com pouco pensamento livre. E eu não sei porque é assim. O rei devia ser o homem mais sábio e devíamos viver numa méritocracia. Só que não é um conto de fadas e tem muita coisa errada. E no geral elas estão conectadas.
E se você pensar bem em algo pequeno que você julga inútil, talvez você consiga notar a rede de intrigas e fatores geradores que mostra que na verdade é um grande problema. O mundo pode ser muito injusto, mas novamente fomos nós que inventamos todo o conceito de justiça.
E o cérebro parece que vai explodir de excesso de pensamentos e não é como se você pudesse fazer algo para mudar o mundo. Também não é como se você não pudesse fazer nada. E só se quer ser ouvido para que entendam de uma vez por todas a sua lógica por trás de tudo.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Céu e aleatoriedades

Uma garota aí super gênio (que não é tão mais garota) falou que a gente só vai passar a viver totalmente e progredir de verdade quando pararmos de acreditar na noção de céu. Na noção de que não importa quanto tempo a gente perca na vida, haverá um céu onde reencontraremos nossos entes queridos e em como a vida é boa. Aí você me diz: Eu não acredito nisso.
Mentira. Você sabe que é mentira. Você desperdiça seus dias tentando evitar pensar no que nunca nos abandona, na dor que é encarar a própria não existência num futuro próximo ou não. A dor de saber que você nunca vai ser tudo que queria, que você não vai ver o próximo milênio, que você vai sofrer, fazer pessoas sofrerem e mais ainda: Que você não vai mais fazer parte desse mundo.
Dói. Dói pra caralho essa realização e deveria doer menos com o tempo, mas dói toda vez que se pensa. O que fazer com o tempo que se tem? O que faz valer a pena? Festas? Beber? Amigos? Família? Estudos, dinheiro, sair, viajar.... Nada? Não sei.
Ter um lugar que se sinta bem, cercado de coisas que te fazem bem. Jogar videogame se quiser, ler até se cansar, que tenha chocolate quente e um café bem gostoso e bebidas novas, onde internet não é necessária porque você está em paz demais para algo tão...silly. Onde andar nos arredores não seja tão chateante. Onde haja menos pessoas para se decepcionar? Nem sei se é isso que eu quero. Não sei.
E esse é o cerne da questão. Você acaba vivendo a vida a imaginar porque você não sabe o que realmente O que faz realidade melhor do que ficção.
Uma vez eu achei que eu havia já ganho essa resposta, mas não. Não é verdade. Você tem de se satisfazer, sua satisfação não pode vir dos outros. Se você não está bem, não deixa ninguém bem. Que clichê estúpido. É que nem "pare de sentir auto-piedade". Não é fácil. É um inferno.
Um inferno que se caí sem nem saber e que não parece ter fim. E é isso. Ponto final. Reticências.
O que faz o sangue no seu cérebro acelerar?