quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Dia 5 Lembranças

As semanas passam sem incidentes.Quase sem notar o mês acaba e outro começa e não há nada a se dizer sobre os dias. Sim, Gabe e Raph cresceram alguns centímetros. Gabe se recusou a cortar o cabelo e agora é bem fácil de discernir os dois.
Os negócios tem ido consideravelmente bem, mas eu não tive que fazer nenhuma entrega, infelizmente. O que significa um mês praticamente sem ir a cidade. Exceto no final de semana passado que fomos no mercado da cidade baixa.
O lugar é sujo, literalmente. O esgoto não funciona direito naquela parte da cidade deixando um fedor horrendo que é o que mantem os soldados longe. Fica bem perto das antigas docas e todo o contrabando chega por aqui. O velho no caso veio comprar informações, saber como anda as coisas fora dos limites da cidade. Sinceramente, não há nada interessante acontecendo no mundo inteiro, na minha opinião. Então eu fico com as crianças enquanto Gary vai com o velho.
A primeira vez que eu vim aqui, havia apenas umas parcas barracas e as ruas estavam em uma situação bem pior. O velho me trouxe para comprar algumas roupas. Eu tinha roupas e eu lembro dele sorrindo e dizendo "Roupas de garotas." e eu realmente preferia que ele me comprasse um brinquedo, mas de jeito nenhum eu ia pedir. O que não interferia no jeito com eu olhava os animais de brinquedos. Eles eram feitos com batata ou algo parecido e eu tinha me encantado particularmente com o cavalo. Ou eu achava que era um cavalo, na época eu nunca tinha visto um cavalo de verdade.
Zack me levou para experimentar as roupas ou algo parecido e quando eu voltei o velho perguntou se estava tudo certo e se abaixou e me entregou o cavalo. Foi a primeira vez que o abracei e ele disse, que ele podia não dar tudo que eu quisesse mas que eu nunca ia saber se eu não pedisse.
Na época a gente não tinha muito mais dinheiro do que para comer mesmo e comprar coisas para revender. Nem todas as famílias queriam ir até as docas para comprar seus alimentos então a gente levava até eles. Eu não tenho noção da extensão dos negócios do velho nos últimos anos, mas se for considerar a quantidade de dinheiro que me dão para eu distrair os pequenos, as coisas vão indo bem.
O sol nem sai direito nesses dias de inverno. O mercado está cheio justamente por isso, a falta de sol, o vento gélido faz com que o ambiente seja um pouco mais suportável. Pelo menos antes de chegar a primeira neve. A lista de compras é curta, Raph precisa de botas e Gabe precisa de um gorro. Um que ele consiga manter durante os próximos dois meses de preferência. O velho precisa de luvas, mas de jeito nenhum ele coloca algo para ele na lista. Ele nunca coloca. Gary está bem abastecido para o inverno, só a mente dele que precisa de alguma diversão porque aparentemente ele não sabe o que é isso.
É no meio desses passeios que eu me pego pensando o quanto a vida antes podia ser melhor. Sinceramente, isso já está bastante bom. Eu sei que isso é uma visão pessoal e tem muita gente em situação pior e que eu devia esperar mais da vida, ter grandes sonhos...Entretanto acho a frustração desnecessária. Não dá. Não existem mais as coisas que antes haviam.
De uma geração para outra todas as perspectivas mudaram. Ok, senhor, legal como você foi para a faculdade e sonhava em poder criar arte e ser famoso, mas seus sonhos não me inspiram. E eu não quero ficar deprimida porque o meu mundo não é colorido como o seu costumava ser.
Quando Gabriel me pede, com o enorme sorriso amarelado, uma câmera antiga, meu primeiro pensamento não é que é muito caro revelar fotos. Ela liga, funciona a bateria e tem um carregador. Eletricidade pode não ser farta mas acho que dá para ele carregar pelo menos de vez em quando, nem que seja para ele ficar observando as fotos na tela.
O velho tem um laptop. Uma coleção deles, a maioria não funciona inteiramente e a gente se diverte trocando as peças até que eles liguem. Funciona como uma planilha mais fácil de adicionar e marcar coisas. Ou como um caderno. Um caderno que você não precisa riscar as coisas quando erra, só apaga e marca o novo.
Ele diz que eles eram muito uteis e que as pessoas costumavam passar o dia inteiro com eles. Ele diz também que eu provavelmente seria uma dessas pessoas, que em outra era ele teria uma garota que ficaria no quarto o dia inteiro e que brigaria com os irmãos se eles tocassem no computador. Ele diz que prefere quem eu sou hoje do que quem eu poderia ser e eu seria uma grande mentirosa se eu dissesse que não fiquei envergonhada com o comentário.
Gary aparece enquanto os gêmeos estão experimentando roupas. Gabe e Raph se acabam de rir com ele provando os mais diferentes casacos. "Eu já tenho agasalho, se lembram". O lembrete do casaco azul não é o suficiente para tirar os gêmeos de sua brincadeira. Somente quando estamos todos dentro do ônibus e os dois folgados adormecem em nós que o silêncio volta a reinar.

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