quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Dia 4 Casa e comida.

Um tapa. Outro tapa. Sinto a vermelhidão no rosto mas não consigo me obrigar a responder a ela. Outro. E então um chamado.Ouço meu nome repetidas vezes. Tantas vezes que começa a me irritar, eu só quero descansar, por que continuam me chamando?
Abro os olhos irritada, mas o que eu vejo dissipa qualquer raiva que eu tenho. Olhos azuis me encaram. Olhos que eu reconheço em qualquer lugar. 
"O que houve?" - estou em uma cama. Minha visão ainda está turva mas eu tenho certeza que esse aqui não é o ferro-velho. O lençol sem duvida não cheira a graxa.
"Eu que te pergunto o que houve, primeiro você não volta para casa, depois falta seu turno e agora todos esses machucados. Quando foi que você se tornou tão irresponsável?" -Tento me concentrar nele. Dizem que se você manter seus olhos em um ponto fixo, as chances da tonteira melhorar são maiores. Não sei do  que ele está reclamando. Não é nem como se ele estivesse em um bom estado também. Parece que não dorme há dias e há fuligem cobrindo seu rosto e sinceramente se eu tivesse que chutar nesse momento eu diria que ele tem quase trinta anos, o que eu sei bem que não é a realidade. 
"Água."
"Que?"
"Você tem água, aí com você. Comida, ração, qualquer coisa" É engraçado vê-lo se atrapalhar todo buscando o cantil na mochila. Não reclamando, eu preciso dessa água. Urgentemente. E não vou mentir, minha boca saliva só de ver a barra proteica que ele estende. Ninguém precisa saber disso, considerando a frequência com que eu reclamo dessas coisas.
"Bebe e come isso.. Temos que ir pra casa logo e você me deve explicações ainda. " A vontade de dar explicações é nula. Bebo quase toda a água do cantil antes de abrir a barrinha. 
"Esses trecos são restos amassados,você sabe disso não? Restos de comida dos outros."
"Não come então."
Eu como. O que não muda o fato de quão nojento é o que eles nos dão. As sobras dos soldados .

"Está quase de noite. Consegue andar ou a princesa precisa ser carregada?"
Ele fala isso, mas a expressão dele é preocupada. As sombrancelhas franzidas e os pequenos riscos ao lado dos olhos azuis mostram isso. Gary nunca foi muito bom em expressar as coisas com palavras então ele devia ser grato por suas expressões sempre denunciarem tudo. Claro que ao invés de ser grato ele odeia quando a gente diz isso a ele.
A caminhada é lenta e dolorosa. Odeio quando tenho que fazer as coisas devagar mas cada vez que tento me apressar a dor manda calafrios nas minhas costas. No final da rua principal  viramos a direita e ali está, o lugar que eu chamo de casa. Ou pelo menos tenho chamado nos últimos sete anos.
A casa tem uns quarenta anos de idade, o pai do velho que construiu. Ele queria poder ficar perto dos filhos após a esposa falecer então tinha desistido do trabalho na cidade para tentar fazer algo em casa, o que resultou no quintal gigantesco ser transformado em uma garagem.
O velho mostra nas fotos antigas como era, tinha uma parte separada para consertos leves, logo na frente. Um galpão de restauração e o resto ele guardava os carros que ele achava que ainda podiam ser utilizados para alguma coisa. Agora os carros se encontram empilhados ao redor da cerca, delimitando o terreno. A frente da casa está sem pintura e a varanda tem piso faltando em diversos pontos. Entretanto as paredes são firmes, as portas e janelas são reforçadas e o teto não tem vazamento e no fundo sabemos que devemos ser gratos por isso.
Gary  bate na porta e fica esperando eu me juntar a ele na varanda. Eu só quero tomar um banho e colocar logo curativos nessa perna, ficar mancando não é exatamente opção. A porta se abre e dois pares de olhos castanhos nos observam desconfiados.
-Gabriel, Raphael. Vocês dois podem nos dar licença? - Gary e o velho são os únicos que conseguem ser duros com os dois. É impossível para mim quando eles fazem essas expressões adoráveis.
"Não sei, você acha que são eles mesmos?"
"Acho que deviamos conferir."
"Com certeza deviamos. Mas, como?" - Raphael dizia quando Gary resolve empurrar a porta de uma vez por todas.
"Qual o problema de vocês dois, não vê que ela tá machucada?"- ele diz enquanto me direciono ao sofá.
E pronto, agora eu tenho dois pequenos ao meu redor querendo examinar meu machucado. Raphael já está perguntando como foi a dor, se eu vi cadáveres distorcidos, sério, que tipo de pessoa ele está se tornando? Gabriel não, ele se senta automaticamente ao meu lado no sofá e fica me encarando como se de alguma forma fosse resolver tudo, mas se recusa a olhar o machucado. Encosto a calça ensanguentada nele só pela diversão em vê-lo sair correndo.
"Você devia dar exemplo, não piorar a situação."
"E você não tem que ser o pai de todo mundo, sabia?"
Há alguns sacos de alimentos espalhados pela sala. Aparentemente as vendas de ontem foram boas, o que significa uma semana sem grandes preocupações. Não há nada demais na sala, nada restou da antiga decoração praticamente, tudo vendido quando a crise começou, só o que foi deixado foi uma foto do velho com seu irmão e uma do casamentos dos pais deles. Fora isso só o sofá , velho, mas ainda confortável. A estante com seus parcos livros que eu e Gary construímos uns anos atrás e sempre achávamos que não ia aguentar nenhum peso mas que ainda está aqui. A mesa de centro inventada a partir de um caixote e que basicamente serve para apoiar copos e é isso.
O velho ensinou a gente a não deixar nada de valor no primeiro andar, só o que for comida e mesmo assim os embutidos estão guardados num quarto que não é utilizado no segundo andar. A porta da cozinha é reforçada mas não é nada em comparação a porta que dá para escada. E a porta no topo da escada.
Me levanto também. Já deu para notar que o velho ainda não chegou e eu realmente preciso limpar esses ferimentos antes de poder falar com ele. A casa foi feita para 6 pessoas. Mas, tem apenas 2 banheiros, ah, e algo que você poderia chamar de banheiro do lado de fora.
Subo as escadas ainda com Raphael me observando. Não é como se ele tivesse algo mais interessante para fazer então não posso realmente culpa-lo, pelo menos ele abre as duas portas para mim sem nem eu pedir.
O segundo andar em nada lembra a deprimente sala. O longo corredor foi pintado de vermelho há poucos meses atrás, a escolha da cor foi do Gabriel, obvio. E apesar de ser horrendamente chamativo, me dá uma sensação de dinheiro. Provavelmente é só porque é tão novo e bem pintado. Há alguns quadros aqui também, no geral dos desenhos feitos pelos gêmeos que a gente simplesmente pendura na parede ou até fotos nossas, dessa família desajustada.
A porta do banheiro é a única que fecha com tranca. Rapha me acompanha até a frente dela e segura-a para mim enquanto entro. É engraçado contrastar a figura pequena, descalça, a camisa larga e os cabelos aloirados tão bagunçados com o rosto tão determinado e responsável. "Grita se precisar de ajuda" ele diz antes de sair todo sério e eu sei que ele vai verdadeiramente ficar prestando atenção porque é isso que Raphael faz.
Não tenho necessidade de fechar o trinco, esforço inútil. No momento tenho que me concentrar no fato que o jeans se grudou nos cortes. E não levemente. O suficiente para eu considerar cortar todo o jeans e tentar lavar com essa parte presa mesmo. Não vou fazer isso, eu sei que no fundo vou ter que descolar de um jeito ou de outro.
Afasto as cortinas e ligo o chuveiro. Tenho a impressão que pelo menos debaixo d'agua a dor vai ser mais tolerável. Eu espero sinceramente que eu esteja certa. Já vi isso acontecer antes e o jeito como sangra não é nem um pouco bonito.
Começo a tirar a calça devagar até que decido ser um pouco mais corajosa e agir como se fosse um band-aid. Dor. Dor o suficiente para eu não conseguir esconder um gemido. A porta é aberta rapidamente e os pequenos da casa me olham desesperados até que eu tente tacar algo neles. O mais perto que encontrei foi o sabonete e não posso reclamar, a porta se fecha logo em seguida, mas agora preciso pegar o sabonete.
Daqui a pouco, por enquanto é melhor deixar a água simplesmente passar no machucado.

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