sábado, 5 de novembro de 2016

Dia 6 Segurança

É engraçado como existe aquele lugar que é simplesmente seu. E por mais perfeito que ele seja você sabe que um dia vai olhar para trás e não vai sentir mais a mesma coisa. As coisas mudam, sempre. Gary não gosta quando eu falo isso, mas é verdade. E está tudo bem, não significa que o que era sua casa antes deixou de ser importante, significa que você mudou e fez outras casas. Acho.
A verdade é que eu não consigo imaginar outro lugar com uma sensação de segurança tão grande quanto aqui, deitada na minha cama. Daqui eu consigo ver a porta e a janela. No caso entre as frestas da janela. Consigo ver a mesa acompanhada da antiga cadeira de madeira que tem quatro pés pintados de cores diferentes. Não há um armário, o que há são 2 longas tábuas servindo de prateleira uma embaixo da outra e há livros pelo chão. Minha bolsa está sempre ao pé da cama, sempre acessível e eu já planejei um milhão de rotas de fuga estúpidas, mas que me dão uma segurança enorme ao saber que não estou trancada.  Apesar de que pular do segundo andar é sempre uma ideia estúpida.
O quarto é lilás. Foi pintado em outra era, para outra garota, mas ainda dá para ver que a cor era lilás. Existem diversas marcas, eu sei que causei a maioria delas e só eu entendo o que elas causam em mim. E apesar de todas as particularidades, de ser aqui que todas minhas coisas ficam, aqui onde eu não tenho que dormir abraçada com a minha bolsa, onde eu posso dormir de pijama, eu sinto falta do esconderijo de ontem. Aquilo ali tem tanto potencial. E só a desvantagem de ser tão perto da cidade.
Claro, no momento é impossível. Eu tenho que fazer meus turnos todos os dias e aqui fica bem mais perto e existe ainda as crianças para olhar. Mas, esse é meu último ano antes de pedir a transferência e parece tão esquisito sonhar com esse tipo de independência. Não é tempo para sonhos, ninguém fala disso. Não é como se eu fosse para um apartamento legal, arranjar um emprego, ir para festas a noite e conhecer pessoas.
É só que eu vou poder ir para um lugar onde posso ver as estrelas praticamente toda noite e eu não tenho que falar com ninguém. Isso já me parece bom o suficiente. Ou é apenas minha mente tentando arranjar uma distração da realidade.
Quando batem na porta, eu me levanto rápido. O velho finalmente chegou. Pego a minha bolsa e abro a porta. Gary. "Ele está no escritório, quer falar contigo."
"Estou ocupada". Não, não estou. Mas, vale a pena ver a cara de choque do Gary. Sempre tão bom soldado, obedecendo a tudo que ele nem consegue ver que eu já estou indo em direção ao escritório, só batendo a porta atrás de mim.
Elas fecham automaticamente. As portas. Só bater, não precisa passar trinco. Quando eu lembro da primeira noite que eu passei na casa anos e anos atrás, eu lembro da segurança que isso ofereceu. Eu lembro que eu estava com tanto medo de tudo, medo do velho que eu achava que ele tinha me resgatado para fazer algo ainda pior comigo. Mesmo sendo difícil imaginar o que seria pior do que ser vendida. Mas, eu lembro do alívio de quando ele me deixou no quarto e me mostrou que só eu podia abrir a porta e finalmente eu pude respirar tranquilamente.
O escritório na realidade é só um pequeno quarto no primeiro andar, perto da cozinha. Era o quarto de empregada antigamente. Abro a porta sem bater. Apenas para ser repreendida com um olhar. "Aparentemente só é necessário um dia fora para esquecer tudo que aprendeu nessa casa." Ele diz sem nem desviar o olhar do caderno a sua frente.
Esse é o jeito dele de demostrar carinho, eu sei. Então eu so me sento a sua frente e espero. "Gary me disse que você não foi no seu turno. Ele me disse tambem que você machucou a perna entretanto ele não sabe me dizer como." 
Não são perguntas. Sinto meu rosto enrusbecer.  Nao é de culpa. Um pouco de raiva, um tanto de ansiedade e uma vontade de esfregar na cara dele o embrulho.  Se eu não tivesse ido ao centro pegar a encomenda não teria uma perna enfaixada, não teria perdido o turno e nem o jeans que eu gostava. Nem a camisa. E também não estaria tendo essa conversa.
Apesar que conversas precisam ser pelo menos bilaterais. 
Eu sei que é um teste como sempre. Ele quer que eu controle minha ansiedade, meu orgulho. Que eu aprenda a ouvir calada, porque ano que vem é ano de ser jogada aos lobos e eles não vão ser coniventes com meu comportamento. A consciência de que é proposital não me ajuda em nada a me acalmar.
Fico calada, isso ao menos eu sei fazer. Quando nenhum comentário adicional vem, eu espero. Quando passa quase 10 minutos de silêncio, eu sinto minha resolução começar a se abater.
Como um relógio marcando o tempo, ele finalmente fecha o caderno e olha para mim. Dá para ver o quanto ele está exausto, os vincos na testa estão mais profundos do que o normal e essas olheiras não estavam desse tamanho da última vez que eu notei.
"O que houve ontem?"
Me ajeito na cadeira antes de começar a história. "Correu tudo bem, eles estavam no local marcado. Três deles. Cheguei mais cedo, deixei o dinheiro escondido como você mandou. Eles entregaram o pacote, eu conferi. Bem básico."
"Nenhuma reclamação sobre a quantia então?"
"Não, eles nem contaram sinceramente. Pareciam...um tanto quanto bêbados."
Eu sei melhor do que mencionar a verdade. ASD, há dois anos que a droga começou a ser comercializada nos guetos e desde então as vendas nunca diminuíram. Os três caras de ontem com certeza consumiram mais do que sua dose diária habitual, sendo sincera eu achava que eles nem iam pegar o dinheiro.
"Ótimo, se eles tivessem noção da fortuna que deixaram de ganhar, nós teríamos problemas." -E é como se o homem de negócios fosse embora. A postura relaxa, ele bagunça os poucos fios de cabelo que tem e bota aquele boné azul tão usado que eu já aprendi a associar a casa, e solta finalmente um sorriso. "Então eles foram embora e por que você não veio para cá de volta, eu juro que ficamos preocupados?"
Eu relaxo também, nem havia notado o quanto minhas mãos estavam tremendo só para me segurar. Entrego logo o pacote para ele, prefiro ficar com isso longe de mim agora. "Faltou luz e eu ainda estava perto da cidade. Fiquei por lá então. Aí hoje eu consegui ter um acidente de ônibus, legal não?"
"Bem agitada sua vida"- dentro do pacote o disco rígido. O velho disse que valia realmente muito dinheiro no mercado da cidade alta. Difícil de acreditar, não se vê ninguém com computadores sem ser o exército e mesmo assim raramente, o exército não teme a si mesmo. "Os curativos? Gary disse que apesar de estar feio não foi nada tão grave."
"Não senhor, nada que semana que vem não esteja normal."
Com um aceno de cabeça, ele me despensa e se vira para o telefone. Eu sei minha deixa e sinceramente comida de verdade me parece mais interessante nesse momento. Antes de eu sair ele ainda me lembra, como sempre, que eu posso dizer se tiver algum problema.
Eu sei que ele não está pensando em mim exatamente. Mas, o carinho pelo menos dá uma ilusão de normalidade. Gary está cozinhando hoje, devia ser eu, claro que a desculpa de não poder ficar em pé muito tempo só funcionará até o café-da-manhã. E eu nem sei do que ele reclama, mingau nem é realmente difícil de ser feito. Mesmo que inclua duas crianças.
Gabriel e Raphael já estão sentados com suas tigelas a frente. Não tenho certeza se a mistura roxa a frente de Gabe é realmente mingau. Geleia de uva, é a explicação que Raphael dá. Alguns minutos depois o velho se junta a nós. 
É tao fácil se distrair do mundo lá fora. Do turno de amanhã, do aniversário chegando quando se está em casa. Quando tudo que você vê ao seu redor te lembra estar em casa. Te lembra que aqui ninguém pode te atacar, que aqui você pode rir em paz e as crianças tem até um quintal para brincar. É facil ignorar tudo. Até mesmo a cadeira vazia ao meu lado.Até mesmo a falta da voz dele e das brincadeiras. Gary me encara, mas nenhum de nós dois vai se atrever a falar algo. Nós não falamos sobre ele.

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