sábado, 5 de novembro de 2016

O oitavo dia de neve

Texto de fevereiro de 2011

   
Mais um dos nossos feneceu essa manhã. Não havia nada que pudessemos fazer além de nossas preces. E tenho a impressão que elas também não são de grande serventia. Sabíamos de sua morte, mesmo assim o coração parece pesado e os ânimos abalados. Qualquer soldado é uma vida, uma pessoa. Por mais que não fosse um amigo íntimo você sente. É uma derrota.
   Ele me chamou atenção, admito. Já há uns dez dias aguenta sua ferida sem reclamar. Apenas agradeceu por ter tido a graça de fazer parte desse regimento. Sua ferida não era tão profunda. Mas, o adversário fora ardil.    
   Contaminara a própria espada. Infeccionado o ferimento não consegue cicatrizar.Isso por si só já seria um problema difícil de contornar nas condiççoes de campanha. Somando-se ao inverno rigoroso, sabiamos que a chance de que ele e todos os outros feridos se recuperassem bem era mínima.
   Não os abandonaremos. Raramento o fazemos. Vivos aind apodem ser úteis e mortos, são nossos mortos e devemos encaminhar suas almas aos céus.
   Aqueles que perecem em batalha, não podem receber honras. E nem por isso suas almas se perdem. Não vejo tanto sentido em cerimônias gloriosas para aqueles que já não estão entre nós... Contudo, sigo as ordens de meu capitão... Enterro ou cremo os corpos e dou a eles uma última benção. Mesmo tendo certeza que o tempo que perdemos revirando corpos após um dia sanguinário poderia ser usado para restabelecer as forças dos que voltarão a lutar.
   Dessa vez não reclamo. Já faz oito dias que estamos sobre o abrigo dessas cavernas. Há oito dias nao para de nevar. Há oito dias nosso trabalho se resume a impedir que a neve adentre nosso esconderijo e nos sepulte aqui dentro. Tudo o que devemos fazer é criar calor, cuidar dos nossos doentes, manter a saúde e sobreviver. Há oito dias não vemos uma batalha.
   A ração é escassa, mas nos aguentara por pelo menos mais sete dias. Se todos sobrevivermos... Não acho que isso acontecera. Presumo que poderemos sobreviver por dez, onze dias. Mas, não tenho necessidade nenhuma de provar que meus cálculos estão corretos. Prefiro sair daqui antes se possível.
Observei o ferido que até agora não reclamara. Ele tem sido minha melhor distração por aqui. Esperava ouvir em seus momentos finais uma queixa, um pedido, um desejo de vingança... Qaundo o fedor pútrido começou a sair da ferida aberta, me ofereci para cuidar dele.
   Não por pena ou misericórdia, antes o fosse. Simplesmente queria ter certeza que não perderia sua súplica. Todos somos iguais ao morrer. Todos fedemos. Não que isso não aconteça com a maioria ainda em vida.
Durante dois dias acompanhei sua resistência. Sabia que não era daqueles que estavam conosco por obrigação. Ele queria lutar, Queria continuar a servir ao capitão. Mas, não reclamou.
   Alias, em pouco mais de quarenta e oito horas a única coisa que disse é que eu deveria arranjar uma maneira de ser mais útil ao regimento do que cuidar dos já condenados. Falou isso sem raiva ou rancor. Realmente queria o melhor para nós como um todo.
   Talvez se fosse em outro alistamento a história não fosse assim. A verdade é que é um orgulho poder vestir o uniforme negro com a pequena estampa de dragão rubro. Caleb era um excelente capitão. Sabia o nome de cada um dos membros de suas tropas e notava problemas individuais que os melhores amigos ignorariam. Não havia contendas nesse batalhão.
   Apesar de seu jeito tolo e companheiro, qualquer um que já o houvesse visto em uma batalha sabia o quão sanguinário ele era.  Seu prazer em guerrar era enorme e nós já eramos conhecidos como o braço direito do rei.  Em pouco tempo esperavamos que alguns de nós fossemos escolhidos para integrar sua guarda pessoal e guerreavamos para atingir esse posto.
   Não sei se o soldado a minha frente desejava essa honraria. Não sei se ele tinha essa ambição. Sei que estava morrendo como tantos outros. A guerra é injusta. Sempre foi. Matamos e estamos dispostos a morrer por um ideal, contudo não podemos e nem conseguimos esquecer que nos dois lados há homens bons.
   Não vivemos um conto. Nossos inimigos não são monstros e sim cidadões comuns. Somente aqueles bitolados são capazes de ver humanos comuns com espadas nas mãos como animais. E com esses eu prefiro evitar travar um combate...
   Ele arqueia de dor. Deveriam dar algo que minimize a sensação da morte. Que o faça esquecer essa dor. Nem que seja uma coronhada na cabeça, que pelo menos é uma dor aguda seguida de silêncio eterno... Fiquei ao seu lado a madrugada inteira, o observando. Tentando em algumas horas compreender anos e dor e angústia...
   Não consegui. E ele se foi enquanto eu cochilava... Foi sem eu saber o porque dele não reclamar. Foi me deixando uma dúvida eterna. Ele poderia ter sanado. Poderia ter me ensinado a não reclamar na morte como ele e ter o mais perto possível de uma morte honrada. Entretanto, ele preferiu ser um egoísta e guardar sua calma para ele...
    É o nono dia nas cavernas. E continua a nevar.

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